Pecuária de corte: é hora de repensar a agregação de valor ao produto?
A atual crise psicológica, de saúde e financeira, ocasionada pela COVID-19 é um prato cheio para especulações em todos os sentidos e com diferentes interesses.
Pecuária de corte: é hora de repensar a agregação de valor ao produto?

Escrito por:  William Koury Filho e Luciano Bitencourt

A atual crise psicológica, de saúde e financeira, ocasionada pela COVID-19 é um prato cheio para especulações em todos os sentidos e com diferentes interesses. A imprensa quer vender notícia, quanto mais sensacionalismo mais vendas – afinal de contas, a natureza humana se interessa apenas pela informação do homem que morde o cachorro e não o contrário.

No âmbito psicológico, a ideia disseminada é a de que todos nós vamos morrer ao contrair o vírus. Ainda que o índice de letalidade da virulência seja medido diariamente em escala global, atingindo um percentual em média de 3,4%, segundo a OMS – vale ressaltar que as estatísticas de óbitos são relativas ao número de casos oficiais diagnosticado como positivo, sendo que a uma grande parte dos infectados pelo vírus sequer manifestam sintomas, não são testados, e não entram na conta, assim o indicador de letalidade deve ser muito menor. Corroborando, especialistas como o Dr. John P. A. Ioannidis, epidemiologista e pesquisador de Stanford, afirmou em artigo publicado essa semana no New York Times que “as evidências disponíveis hoje indicam que a letalidade pode ser de 1% ou ainda menor” [1].

Com grande pesar pela valorização da vida em primeiro plano, porém estatisticamente para saúde, a maior preocupação não está no número de óbitos - visto que anualmente lida com estatísticas de epidemias como a dengue e as diferentes gripes – mas sim pelo colapso do sistema de atendimento médico. O agravamento do efeito psicológico pode levar ao caos na capacidade da estrutura hospitalar. Os leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) e o número de respiradores artificiais são insuficientes para atender simultaneamente um volume exponencial de pessoas. Assim, segundo especialistas, para evitarmos um número maior de vítimas fatais, se faz necessário o isolamento social eficiente por cerca de 14 dias com foco nos grupos de risco. 

Tendo em vista o impacto financeiro de uma paralisação geral das atividades comerciais e produtivas, os indivíduos saudáveis deveriam retornar gradativamente ao trabalho entrando numa política de isolamento vertical e cirúrgico para que com prudência sejam mantidas as engrenagens da economia em funcionamento. Tempos de responsabilidade, sabedoria e serenidade. Do ponto de vista especulativo, qualquer crise se transforma num prato cheio para os jogadores hábeis do mercado financeiro. A conjuntura das bolsas instáveis pelo mundo, e do dólar batendo 5 reais, faz com que nossos produtos de exportação tenham um preço muito competitivo, em especial os produtos do agronegócio.

Para ser mais específico, vamos conjecturar o que parece estar acontecendo com o mercado da carne bovina. A falta de interação social e o receio de haver recessão provocam a breve diminuição do consumo de carne no mercado interno. Nesse sentido, a pressão psicológica recai sobre o pecuarista devido às informações alarmistas. Inseguro, o produtor de carne seguia vendendo na baixa, entregando o boi a preço de banana. Por outro lado, pensando friamente, a importação de carne brasileira se apresenta com frequência muito atrativa aos olhos dos estrangeiros em razão do valor da arroba no Brasil (o menor no comparativo aos principais players desse mercado) e da qualidade do produto [2]. Tal conceito já se refletiu no mercado de hoje, 27 de março, em que praticamente um mês depois do primeiro caso de COVID-19 diagnosticado no Brasil, o valor da arroba voltou a patamares de preço praticados antes da crise, com negociação de boi a vista a R$205,00 no estado de São Paulo.

Somente no mês de dezembro de 2019, ou seja, antes da pandemia do COVID-19, o Brasil somou 174 mil toneladas exportadas de carne bovina, ao valor recorde de US$ 838 milhões [3]. O mercado que mais aproveitou os preços convidativos do produto brasileiro foi justamente a China, epicentro do surgimento e disseminação do coronavírus. Agora, em janeiro deste ano, as exportações para o país asiático somaram 53,2 mil toneladas e US$ 322,8 milhões em receita, com aumento de 126% em volume e de quase 200% em valores, respectivamente [4]. Será que há motivos para acreditar que com a futura normalização dos mercados esse cenário possa ser diferente?

Se considerarmos que a carne é um alimento essencial, e a sua consequente demanda, o seguimento da pecuária pode não somente ser menos impactado como também obter uma recuperação mais rápida do que outros negócios mais vulneráveis em momentos como o atual na conjuntura da economia mundial. Além disso, o Brasil apresenta um mercado interno de 210 milhões de habitantes, sendo que boa parcela dessa população adora um churrasco com preferência para a carne bovina, e mesmo considerando uma redução no poder de compra da população, ainda é um mercado grandioso.

Portanto, o que parece estar em jogo na manutenção do boi como um ativo bastante estável é a resposta para as seguintes perguntas: 1) o pecuarista deveria instaurar uma queda de braço com a indústria frigorífica segurando o boi no pasto para pressionar o aumento do preço pago pela arroba?; 2) como enfrentar essa situação com o Governo Federal e a opinião pública que seriam pressionados pelo aumento no valor da cesta básica e, consequentemente, da inflação?; 3) e, sendo um dos setores produtivos com menor relação de densidade demográfica, e proporcionalmente um dos de menor risco quanto a possibilidade de expansão de surtos virais em humanos, o agronegócio, em especial a pecuária brasileira, tem que repensar a agregação de valor à atividade? Eis as questões.